DONA YOLANDA
- Cleusa Bomfim de Andrade
- 23 de mar. de 2018
- 4 min de leitura
Era o ano de 1978. Tempos de ditadura, decadentes bem da verdade, mas ainda ditadura.
Eu estava no quarto ano primário e quando começou aquele ano letivo, eu rezava para ficar na mesma sala da minha melhor amiga, a Simone. E foi ela mesma quem me deu a boa notícia, e também foi quem me deu a outra, a má. A boa é claro, que estávamos juntas novamente na mesma classe. Desde a primeira série que estudávamos juntas, inseparáveis.
Neste dia, vínhamos caminhando pelo corredor para chegar até o pátio, a Simone falava baixo, num tom de cochicho, que a nossa professora daquele ano era uma bruxa, todo mundo tinha medo dela.
Estava na escola há dois anos, tempo suficiente para os alunos que estudaram com ela espalharem para a escola inteira que megera perdia para ela.
Chamava-se Yolanda, e não deixou por menos, desde o primeiro dia de aula deixou claro porque tinha aquela fama. E fez jus a ela.
De poucos sorrisos, para não dizer nenhum, rústica ao lidar com a classe, escrevia desde a hora que chegávamos até cinco minutos antes do horário da saída, só dando uma pausa na hora da chamada (ai de quem conversasse nessa hora, era castigo na certa!).
Alta, de cabelos curtos e loiros (tingidos), deveria ter uns quarenta e poucos anos. Raramente usava avental, porém vestia-se de maneira discreta. Não morava perto da escola, pois várias vezes a vi descer do ônibus a caminho do colégio.
Todos da classe tinham medo dela. Eu particularmente sentia pavor. Não via mais graça na escola.
Eu que até então só tivera professoras boazinhas desde a primeira série, salvo a Dona Ana com quem estudei apenas um mês, graças a Deus!- e que estava acostumada a apagar a lousa, a sentar-me no lugar que queria, a conversar durante as aulas, ir ao banheiro (quanse sempre só para passear no pátio), estranhei bastante aquela mudança.
Para falar a verdade, ir para a escola se tornou um sacrifício para mim. Não era só por causa das tarefas, que eram muitas, mas principalmente pelas broncas frequentes que eram para valer.
Seus raros sorrisos e escassos gestos de gentileza eram dispensados a somente uma menina da classe, que se tornou a "queridinha da megera" e era assim mesmo que chamávamos a Fabíola.
Uma menina magricela, chata e loira, que tinha uma irmã mais velha - a Fátima da 6a série - que havia sido aluna da megera e que provavelmente também foi sua "queridinha".
Não demorou muito e eu já a detestava. Acho que mais pela atenção que ela dava a magricela do que propriamente pelas broncas ou por sua secura com a classe.
Por um bom tempo esse clima perdudrou na sala de aula.
Entretanto, em uma tarde, notei que Dona Yolanda estava diferente. A classe conversava muito enquanto ela escrevia na lousa, Ao contrário do habitual, ela não se virou chamando a atenção dos alunos.Continuou a escrever sem parar, todavia parecia não estar ali.
Eu que sempre fui curiosa ficava imaginando o que teria acontecido, pois no dia anterior ela havia faltado (coisa raríssima!) e naquela tarde percebi que ela estava com uma aparência cansada, triste e esgotada.
Enquanto copiava a lição, pensei que talvez ela estivesse doente e que por isso faltara e ainda estava indisposta. Talvez por este motivo permanecia tão calada, sem ânimo para dar suas broncas na classe.
Então uma moça apareceu na porta da sala de aula. Alta, cabelos castanhos escuros e longos até os ombros. Usava uma calça jeans e uma bata branca (moda da época e que por sinal voltiu novamente).
Quando a mestra percebeu a presença da moça, parou de escrever, colcou o livro sobre a mesa e foi até ela. Trocaram algumas palavras e então a moça entrou e sentou na cadeira da "bruxa".
Ela terminou de escrever o texto de Português no quadro, colcou alguns exercícios e ordenou que fizéssemos assim que terminássemos o texto.
Eu pertencia à primeira fileira perto da porta e sentava-me na penúltima carteira - a última estava vaga - e foi nessa direção que ambas caminharam. Pegando outra carteira vazida da fileira do lado, a professora e a visitante sentaram-se atrás de mim.
A princípio eu tremia, temendo uma represália da mestra. Não sei bem o porquê, mas temia. Contudo as duas nem me notaram e começaram conversar. Nos primeiros momentos a presença foi o centro das atenções da classe, sobretudo por estar numa conversa confidencial com dona Yolanda. Porém, quando os alunos perceberam que o assunto era sério, trataram de aproveitar o máximo que podiam.
Eu, ao contrário mal podia respirar com elas ali tão perto de mim. Como já disse, sou curiosa e já não podia tirar proveito da situação como os demais faziam, tratei de tentar escutar o que as duas conversavam. E ouvi.
Falavam num tom bem baixo, mas entre uma palavra aqui, outra ali, uma frase não muito clara, outra mais ou menos, fui aguçando o ouvido e descobri o assunto daquela conversa tão confidencial e daquela inesperada visita.
Ouvi dona Yolanda chamá-la de filha, algum tempo depois, pelo nome, Sônia. Deveria ter uns vinte anos, claculei. Não ouvi muito, também não tinham muito o que dizer.
A classe toda estava numa algazarra só. As meninas conversavam, riam, trocavam de lugares a todo momento, jogavam jogo da velha e "stop". Os meninos andavam pela sala, batiam figurinhas, levantando de seus lugares a todo instante e provocando as meninas.
Ninguém percebia o que estava acontecendo. Tive pena de Dona Yolanda. Acho que foi nesse dia que deixei de detestá-la. Atrás de mim ouvia o choro baixinho das duas, continuei a copiaro texto da lousa, mas já não enxergava as palavras nitidamente, meus olhos estavam embaçados das lágrimas que ameaçavam cair.

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